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A Luz e a Sombra
José Caldas

A relação com os ancestrais povos da pátria/língua portuguesa, que a Cena Lusófona está a me regalar, começa pelo imenso afecto para além de qualquer língua. É essa metalinguagem quotidiana dos olhares e do toque que me fazem mergulhar nas minhas origens miscigenadas e que afirmam a minha intuição num teatro arque-típico da nossa língua.

Esse que mestiça os sons extremamente musicais dos sotaques, essa relação de prazer com o corpo – naturalmente dançarino e essa religiosidade, no seu sentido mais profundo de religar-nos com as imagens do nosso museu do inconsciente.

Imagens do corpo em dolorosa festa dos sentidos apurados que o Teatro concretiza. Dolorosa porque a memória dói quando sentimos a presença do duro pai Ibérico, que nos transmitiu o gene de uma civilização imposta, mas que nos doou também o prazer da festa. Festa que os escravos africanos trouxeram ao Brasil e como sangue mais forte e mais antigo imperou acima de tudo. Festa da ambivalência portanto que concretiza a impossível união de opostos: sol e lua em namoro sideral.

O atelier teatral/musical que eu devo dirigir é um espaço de reaprendizagem da espontaneidade e dum jogo dramático ainda mais transdisciplinar, porque o que se dá e o que se recebe arrebenta as margens da relação comezinha, faz-nos habitantes de outros estados do ser. A multiplicidade dos sons do afecto faz-nos ouvir/sentir que o teatro acima de tudo é o território das relações colectivas, da convivialidade. Convivência única que depois oferecemos generosamente ao público. Mas também espaço do conflito das diferenças, que também ofertamos. Não é pacífico o afecto que encontro, é também desafiador, coloca em causa meu saber teatral e vivencial. Aceitar a diferença criativa desses humanos actores, desafiá-los, desafiar-me a criar com eles um exercício teatral onde as diferenças não estão disfarçadas, onde elas gritam orgulhosas - é um risco e uma realização.

Não queremos um trabalho dramático "harmónico", mas conflituoso como o fenómeno teatral exige. Porém como conduzir, nessa corda bamba o trabalho? Uma segura certeza tem-me guiado: a crença na magia única da arte, jogo por excelência.

E temos apostado nesse jogo com as suas regras e as suas transgressões. Esse jogo de luz e sombra que é o teatro. Para isso se inventou o teatro, estou pensando agora, para servir como elemento lúdico que possibilita ao ser humano, "brincando", enfrentar o facto que, de outra maneira lhe seria impossível: o de que é ilusão aquilo que parece verdadeiro e, certamente, verdadeiro aquilo que se apresenta como ilusório. Isso tenho aprendido com os meus novos companheiros de trabalho e também de que o teatro nos remete aos mitos, aos padrões ancestrais de comportamento, aos símbolos que se repetem nas mais diversas culturas, nos fazendo recordar o quanto somos semelhantes em essência e em atitudes com os seres de todas as partes e de todos os tempos. Símbolos que desafiam o desenvolvimento da nossa consciência, sua capacidade de integração, e oferecem ora a sua face luminosa, ora seus aspectos mais obscuros. E, entre deuses e demónios, inércia degenerativa e acção criadora, percebemos que o guião que se desenrola está escrito além das estrelas, no espaço da intemporalidade, no tempo sem lugar de eternidade.

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