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Teatro Popular

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A Descoberta da Moura*


Augusto Baptista



Entre a Guarda e a Covilhã, frente a Belmonte, casario breve na paisagem, ergue-se o povoado de Vale Formoso, outrora palco de uma importante representação popular: A Descoberta da Moura.
Na terra, por o terem presenciado ou dele ouvirem falar, todos sabem do evento. Recordam-lhe sobretudo a acção, os aspectos que despertam os sentidos; desvalorizam-lhe a intriga, a mensagem. «Havia uma moura toda ourada, ia num cavalo, queriam-na roubar, mas o exército não deixou, depois muitos tiros, muita coisa». Eram lutas entre mouros e cristãos? «Olhe, agora aqui é que não sei explicar».
Dificuldade em explicar o que se jogava em cena tiveram Tereza da Rocha Almeida e muitas pessoas com quem falámos, incluindo actores da última representação: Setembro de 1951. O comandante da Cavalaria, Ludgero dos Santos Viegas, escusou-se mesmo à conversa, pretextando já de nada se lembrar.
Sorte nossa, outros actores se recordavam. E, entre eles, a moura, Maria Suzel Azevedo: «Tinha 11 anos quando fiz o papel. Eu não falava, era só gestual. Levava um vestido de seda, branco-pérola, muito ouro. Era uma história de fantasia...». E de onde veio tanto ouro? «Quase todas as pessoas tinham um cordão. Pediu-se, emprestaram. E, claro, marcou-se para depois se restituir aos donos».
Vale Formoso, terra de mulheres bonitas, esmerou na escolha da moura. «Era um encanto de criança», dizem-nos. Os lindos 60 anos de Suzel Azevedo, as velhas fotografias da representação, não nos deixam duvidar. «Eu estava na floresta, fechada numa laje. Atraídos pela música, vieram uns caçadores. Intrigados, chamaram um grupo de pedreiros, partiram a laje, libertaram-me». Mas a história complicou-se: «Acabei por ser levada para o castelo dos mouros. Depois de muita luta, os soldados resgataram-me. E dei a volta à aldeia em apoteose, levada no cavalo do comandante dos militares».
Militares havia-os de vários ramos, efectivos abundantes. Estêvão Gomes Marques tinha 22 anos à data da representação, andava na tropa a sério, «era explorador-hipo». Em cena, coube-lhe integrar o grupo de Artilharia: «Éramos quatro, pelo menos. Tínhamos fardas emprestadas pelo quartel da Covilhã e estávamos naquela bazuca em cima de um carro de bois, a imitar tiro para o castelo do rei mouro».


Uma guerra das Arábias

Foi um tiro de artilharia que acabou por ditar a vitória das forças sitiantes e a libertação da moura, prisioneira da sua própria gente. Mas a história tem mais enredos.
Atento à cultura popular na Beira Baixa, Jaime Lopes Dias esteve em Vale Formoso em 9 de Setembro de 1951. Da varanda da casa de Estêvão Marques Cândido, assistiu à representação e, em "Etnografia da Beira", separata n.º 169 de "Ocidente", conta em pormenor como tudo se passou.
O antigo Largo do Espírito Santo, hoje Joaquim Pereira de Macedo, foi pequeno para albergar tanta gente, ávida de festa e de teatro. Nas abas do largo, em bancadas construídas para o efeito, no cimo das casas de propósito destelhadas, nas janelas e nas varandas, apinhou-se o público: duas mil pessoas, mais ou menos. Os ingressos custavam 2$50 e os apuros de bilheteira foram destinados a custear despesas e a contribuir para a reparação da capela da Senhora da Saúde. No centro do largo, o castelo do rei mouro erguia-se na orla de uma densa floresta, com coelhos, pombas e rolas: bicharada de verdade. E, entre o tufo vegetal, um rochedo a fingir, com precioso tesouro.
Pouco além das três da tarde, entre o estralejar de foguetes, o cortejo dos actores chegou ao largo. A abrir, as forças de Cavalaria (um oficial e dez soldados). Logo após um casal de velhos e dois bobos enfarruscados, arribou o corpo da contradança: grupo de 6 damas e 6 pajens, mais o portador do pau das fitas, o ensaiador (Mário Brás da Ascensão) e os músicos. Pronto chegou o rei mouro com soldados, trajes de guerra. Depois do grupo de pedreiros e do grupo de caçadores, esmagadoras, vieram as nossas tropas: artilheiros e infantes, estes com um comandante, dez soldados, dois maqueiros e um enfermeiro. Terminado o desfile, rei mouro e súbditos no castelo, casal de velhos sentado à mesa, em evidência, o corpo das contradanças ocupou o centro da cena e da acção, por longo período. Nos intervalos, os bobos faziam tropelias, o casal de velhos andarilhava. Danças findas, rapazes a uma mesa, raparigas a outra, novos desempenhos esperavam os componentes do rancho.
O rei mouro, ao ver no terreiro as lindas tricanas das danças, luxurioso, à força de dinheiro e com a conivência da velha, integrou-as no harém. Entretanto, os caçadores atreveram-se a entrar na floresta, olho num monstro rastejante, espécie de dragão com evidências de tartaruga. Aniquilada a animália, fustigados coelhos, rolas e pombas, de repente, do mais fundo da floresta, uma maviosa melodia, uma música encantatória se desprende, gerada no ventre da laje musgosa. E chamaram os pedreiros!
Partido o pedregulho, a aparição! Radiância colorida, ao som de uma harmónica de boca, a moura encantada! A quem pertence o achado? Quem leva o tesouro? Caçadores e pedreiros em disputa, os vassalos do rei raptaram a menina, levaram-na para o castelo.
Só tarde, à força de bombarda e de engenhosos assédios militares, a fortaleza cedeu, a mourama foi derrotada, damas e mourinha libertadas. Seguiu-se o cortejo da vitória, moura na sela da montada do cavaleiro-chefe, a acenar, povo em delírio.


Um caso de coração

Antes de 1951, há referência a uma só representação de A Descoberta da Moura:, 1918 ou 1919. Sendo de admitir espectáculos em datas anteriores, não há disso testemunhos. Seguro é dizer-se que, após 1951 e até aos nossos dias, não mais Vale Formoso se animou com as inflamadas lutas entre a mourama e a cristandade. E daqui para a frente? Voltará o povo de Vale Formoso a descobrir a moura?
Arménio Marques Matias, a cumprir terceiro mandato à frente da Junta de Freguesia, tinha oito anos em 1951 e não se lembra com exactidão como tudo se passou. Nítida, guarda a imagem «de um cavaleiro montado num cavalo magnífico, cinzento, a galope, a juntar-se à Cavalaria... as crianças a ver, eu no meio...». De resto, «isto só não é uma lenda de cérebro, por que temos coisas palpáveis: as fotografias e as pessoas que participaram».
A possibilidade de reposição em cena da peça assume, para Arménio Matias, contornos complicados «é um puzzle que está todo destruído». Dificuldade maior afigura-se-lhe a falta de gente: «é muito provável que nós na aldeia não tenhamos pessoas disponíveis para fazer isto. Teria de vir gente de fora». A esperança, parece-lhe, poderá estar na vizinha escola agrícola: «A directora, engenheira Alcina, já me fez o desafio, disse-me que nos ajudava a pôr isto de pé».
Para José Carlos Fonseca Campos, «toda a vida no meio associativo e recreativo», os anos de emigração na Suíça e em Angola refinaram-lhe as recordações: «Estas coisas deixam uma nostalgia imensa». Recentemente, tentou reanimar as tradições musicais da terra, reconstituir a velha Banda: «Andei a distribuir fotocópias de solfejo que o meu amigo José Alberto, sargento reformado e músico da Banda de Caçadores 5, fez o favor de me enviar. Incitei, disse inclusivamente que ensinava aqui em casa a solfejar...». A utopia deu lugar ao desencanto. «Faltam pessoas que se interessem pelas coisas. As discotecas, a própria televisão, tiram muito tempo aos jovens. Hoje o bairrismo é diferente. Reunir os elementos necessários para fazer A Descoberta da Moura seria quase uma espada em África».
Mais optimista se assumiu Tereza da Rocha Almeida, com quem cruzámos ao pé de casa: «Se houver uma pessoa mais antiga a dar voz ao ensaiamento, é possível voltar a fazer-se». Também a moura Suzel Azevedo e o marido, Ludgério Gonçalves, admitem o ressurgir da peça «se houver responsáveis a falarem com as pessoas, a pedirem, a definirem as regras desde o início». Para Antónia Marques Freches, 76 anos de Vale Formoso, a coisa resolvia-se caso Odete Marques, «filha do senhor Marques, um grande ensaiador de teatros», pusesse mãos à obra: «Ela era capaz, mas aquilo leva muita coisa, dá muito trabalho... e ela vive na Covilhã».
Talvez, enfim, a solução não esteja em nenhuma destas pessoas em particular e resida no conjunto, em todas elas. E noutras vontades que só a dinâmica, só a acção permitirá encontrar. Talvez, se houver contacto, querer, tentativa...
Em conversa com moradores de Vale Formoso, por uma razão ou por outra, todos gostariam que a sua representação avançasse. «Um dos objectivos da minha vida era fazermos isto», desabafa Arménio Matias, presidente da Junta, afligido por uma razão de força maior, por um caso de coração: na velha peça de 1918, quem fez o papel de moura, quem vestiu a pele de jovem donzela encantada foi seu pai, o saudoso Ti Zé Bichinho. Mas, submergido pelos obstáculos, Arménio Matias desalenta: «É difícil...».
Tão difícil que, sensatamente, se impõe concluir: a Beira Baixa não mais se animará com A Descoberta da Moura!Entretanto, conhecidos os desvarios da paixão, avaliada a força das ressacas nostálgicas, estimado o poder do coração, resta saber se, em Vale Formoso, o futuro não nos reservará uma agradável surpresa...


Os protagonistas

Com o precioso apoio de José Carlos Fonseca Campos, registam-se os nomes e os desempenhos da maioria dos participantes em A Descoberta da Moura, representação de 1951. A seguir aos nomes e em alguns casos, juntam-se, entre parêntesis, as respectivas alcunhas.
Moura: Maria Suzel Azevedo (Célita); Dragão: Alfredo Azevedo; Bobos ou Pretos:Casal de Velhos: Manuel Marques (Manuel Bardoto) — Velho, António Leal (António Caixa) — Velha; Mouros: Manuel Nunes Pereira - Rei dos Mouros, Manuel dos Santos Guerra, José Alberto da Fonseca Duarte, José Maximino, António da Costa (Tó Amendoeiro), António Miguel de Jesus, (António Pinhel); Pedreiros: João André — Chefe, Manuel Carrilho, Joaquim Carrilho, José Pedro Silva (Pedreirito), Guilherme (Guilherme da Tia Rosa); Caçadores: Manuel Guarda — Chefe, Luís Marques Figueiredo (Luís Padeiro), José Paiva Sousa (Zezinho); Cavalaria: Ludgero dos Santos Viegas - Chefe, António Joaquim Marques Figueiredo, Licínio Pereira dos Santos, António Marques M. da Silva (Toneca Paulos); Artilharia: António dos Santos Calheiros (Tó Leal) — Chefe, Estêvão Gomes Marques (Estevão Retrato); Infantaria: Manuel Soares da Rocha (Manuel Pardal), António Gomes (Tó Sardinheiro), Aurélio Poejo, Jaime da Costa (Jaime Amendoeiro); Músicos: Januário de Sousa Campos (Januário Cerejo), Mário Esteves Leal, Januário Esteves Leal, José Martinho, António Osório, João da Maria da Glória (João do Bombo), Alexandre Torres (Alexandre Questina), Manuel Amaral, Manuel Antunes Leal (Manuel Caixa), Manuel Martins (Manuel Megre), Francisco Soares da Rocha (Francisco Pardal), José Leal (José Espanhol); Rancho: Damas — Maria do Céu Domingos de Campos, Maria (Maria da Alexandrina), Aurora Rocha de Oliveira (Aurora do Simão), Josefa dos Santos Amaral (Zéfita do Poço), Maria do Carmo (Carmita do Luís Eugénio), Aurora da Nave Reis; Rapazes ou Pajens — Simão Rocha da Nave, José Gonçalves Horta (Zé Ferrador), Amândio Antunes Leal (Amândio Caixa), José Azevedo Pinto (Zé Pinto), Horácio da Nave Reis, José Marques Pereira (Zé Casaca); Portador do Pau das Fitas — Alexandre Lobo; Chefe — Mário Brás da Ascensão; Mordomos da Festa: José Azevedo, António Azevedo, Fernando Marques de Almeida, Mário Brás da Ascenção Armindo Cunha e César Fernandes;

De Argozelo a Crasto
Vale Formoso, com A Descoberta da Moura, é exemplo da dificuldade em hoje trazer à cena velhas representações, seja na Beira Baixa seja noutras zonas do país. Entretanto, contrariando a tendência, há núcleos de resistência, localidades onde as representações populares, anualmente (Auto de Floripes nas Neves, Bugiadas no Sobrado/Valongo) ou com curtas interrupções (Auto de Floripes em Palme, Auto de Santo António em Portela Susã), teimam em concretizar-se. Caso digno de nota passou-se em Argozelo, Trás-os-Montes. Depois de mais de 60 anos de letargia, Os Doze Pares de França subiram ao tablado em 13 de Agosto de 2000, muito por força da vontade do povo da terra e da teimosia de José Fernandes de Oliveira, Conde de nomeada, com Carlos Oliveira na pele de ensaiador e segundo o enversado antigo de Luciano Manuel Lopes.
Outros exemplos de resistência poderiam ser citados. Faça-se só, para terminar, menção à iniciativa popular em Crasto — freguesia de S. João da Ribeira, Ponte de Lima — de querer reanimar a Turquia de Crasto (12 de Agosto 2001), representação há dez anos adormecida. Esta importante acção cultural é encabeçada pela Comissão Administrativa da Turquia 2001, estrutura integrada na ASCURI (Associação Cultural, Recreativa e Desportiva da Ribeira) e presidida por Luís Redondo e Adelino Silva.

* A Descoberta da Moura, NM n.º 476, 8 de Jul 2001