01/07/2018 “Espectros de Batepá” apresentado em Coimbra Diana Andringa: “manter a memória das vítimas é a única forma de justiça ao alcance dos vindouros”
Foi apresentado no passado Sábado, nas novas instalações da Cena Lusófona, em Coimbra, o livro “Espectros de Batepá. Memórias e narrativas do «Massacre de 1953» em São Tomé e Príncipe”, de Inês Nascimento Rodrigues. Catarina Martins e Diana Andringa partilharam com a audiência as leituras que fazem da obra, numa sessão muito concorrida. A autora e o coordenador do projecto CROME seguem agora para São Tomé, onde organizam uma mesa-redonda no próximo dia 4 de Julho.
Naquela que foi a primeira iniciativa aberta ao público na nova sala polivalente da Cena Lusófona, Catarina Martins salientou: “A Inês escreve para aqueles e aquelas que querem viver criticamente com os seus fantasmas e torná-los parte da memória e identidade colectivas, enquanto parte da História e enquanto sujeitos vivos. Mais do que nunca, importa tornar presente aquilo que deslocámos para a esfera dos silêncios”. “Longe de ser bonzinho” - continuou -, o colonialismo português “era feito, criava e alimentava-se desta violência extrema, constante e estrutural, que hoje encontra prolongamento nas relações sociais, em particular no racismo. Um racismo omnipresente num país que até vai aceitando – e ainda bem – algumas minorias, mas não aceita as minorias racializadas e não admite sequer confrontar-se com a possibilidade de ter sido e ser racista, nas instituições, no quotidiano, na memória”.
Elogiando a capacidade demonstrada pela autora para escrever sobre um massacre - “conceito que ultrapassa a compreensão e a possibilidade de narrar” - Catarina Martins destaca na obra de Inês Nascimento Rodrigues o “poderoso trabalho de tradução” que, contrariando as “falsas pretensões de totalidade” que a “racionalidade moderna” e o “conhecimento positivista” tentam impor. “Espectros de Batepá” - afirmou a professora e investigadora da Universidade de Coimbra - faz “jus às polifonias, às contradições, às polissemias, aos não-ditos, ou aos dizeres dos próprios silêncios - afinal, formas de resistência que, deste lado, não queremos incluir na própria noção de resistência”.
Inspirada pelas palavras da escritora ruandesa tutsi Scholastique Mukasonga, Catarina Martins apelou, em conclusão: “Deixemo-nos interpelar pelos fantasmas, serpentes negras deslizantes e fugidias, para encontrarmos o idioma que permita conhecer para além do visível, dizer o indizível, ultrapassar limiares e exercermos o nosso dever crítico de memória”. O livro agora apresentado é precisamente um “guia para iluminar as formas através das quais estas figuras espectrais do passado permitem compreender o presente e mudar o futuro”.
Bruno Sena Martins (moderador), Catarina Martins, Diana Andringa e Inês Nascimento Rodrigues
A memória das vítimas
A jornalista, realizadora e investigadora Diana Andringa começou por reconhecer o seu interesse pessoal e profissional pelos “silêncios que pesam sobre o nosso passado colonial”, em particular pelas “histórias que a memória oficial portuguesa sepultou”. Depois de resumir os principais acontecimentos em torno do Massacre de Batepá, relembrou o depoimento de um dos sobreviventes, Francisco Bonfim, que ela própria recolheu, em entrevista efectuada em 1989. Nesse como noutros depoimentos que entretanto haviam sido recolhidos, fica clara a falsidade da versão avançada na altura pelas autoridades coloniais, segundo a qual o massacre teria sido uma resposta a uma “conspiração comunista visando criar um governo dos nativos” em São Tomé. Diana Andringa recordou ainda a mensagem escrita na altura pela escritora são-tomense Alda Espírito Santo, que acompanhava a investigação ao caso feita pelo advogado Manuel João da Palma Carlos: “é impossível que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passou não foi mais do que uma matança em série, uma loucura colectiva de parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos”.
Agradecendo a Inês Nascimento Rodrigues por ter contado esta história - “que é também a minha história” - Diana Andringa sintetizou: “a questão central do livro tese da Inês é que, como os timorenses mortos pelos indonésios, os mortos santomenses de 53 se recusam a morrer e perseguem os vivos, para que não os condenem à morte definitiva por amnésia, hoje tão em voga”. Em relação aos aspectos sobrenaturais na construção das narrativas e na transmissão da memória sobre este e outros factos históricos do passado colonial, Diana Andringa acrescentou: “não creio no invisível, nem na levitação das bruxas, nem em vampiros, mas creio na permanência do trauma e admito a transmissão de memórias traumáticas – e, sobretudo, acredito que manter a memória das vítimas é a única forma de justiça ao alcance dos vindouros”.
No próximo dia 4 de Julho, a equipa organiza em São Tomé (às 18h00, na Cacau), a mesa redonda “Memórias coloniais: o que fica dos passados difíceis?”, com intervenções de Conceição Lima (jornalista e poeta), Fernanda Pontífice (Reitora da Universidade Lusíada de São Tomé e Príncipe), Miguel Cardina e Inês Nascimento Rodrigues.
Nesta sessão será apresentado o livro “Espectros de Batepá” e ainda a obra (também recém-lançado em Portugal) “As Voltas do Passado: a guerra colonial e as lutas de libertação” de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins (Tinta-da-China).